sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Linhas de fuga na canção brasileira do século XXI

Negro Leo


O panorama da canção brasileira contemporânea impõe ao crítico a adoção de outras perspectivas de abordagem e compreensão. Diante da profusão de tendências que se desdobram para além das fronteiras nacionais, percebe-se imediatamente a impossibilidade de uma sistematização mais rígida, orientada por critérios habituais, como os que balizam a pesquisa musical no Brasil: a história antiquária (o folclore), a história monumental (a bossa nova como epicentro), a manutenção da “identidade cultural” (e dos valores identitários), a relação da cultura com a dimensão do popular e do nacional, os movimentos teóricos que operam a partir de grandes marcos.

Alguns dos compositores mais singulares da canção brasileira da primeira década do XXI se abriram para transformações políticas e culturais que modificaram a sociedade brasileira nos últimos 25 anos. Como uma resposta a esse ambiente marcado pelo movimento, pelo deslocamento e pelo conflito, enunciam algumas modulações cancionais cuja principal característica é a criação de linhas de fuga: fuga das sobrecodificações e generalizações impostas pelo mercado, pelo gosto médio vigente, pelas tendências midiáticas, e sobretudo por duas das principais vertentes ideológicas da música brasileira, consolidadas a partir dos anos 70: o nacionalismo (cepecismo) e o discurso antropofágico (tropicalismo). Não que não haja na canção contemporânea elementos do nacionalismo (a presença de Baden Powell na obra de Kiko Dinucci) e do tropicalismo (a presença da primeira fase do tropicalismo nas canções de Negro Leo), mas não há o menor traço de compromisso com as pautas e tendências geralmente a eles vinculadas. Observa-se que a matéria cancional se desprende de seu referencial histórico e de alguns perfis ideológicos.

A canção brasileira no século XXI se modificou pela força multidirecional dos múltiplos deslocamentos que marcaram este período. Transformações sociais, culturais, tecnológicas, mutações do trabalho e das formas de vida, que implicaram na redistribuição dos papéis simbólicos que determinadas vertentes da canção ocupavam no passado recente. Por exemplo, o reconhecimento dos cantores dos anos 70, rebatizados como “bregas” (Reginaldo Rossi, Odair José), do rap da periferia de SP (sobretudo, dos Racionais), e mais recentemente, de gêneros ignorados como a guitarrada e o funk carioca, testemunham que a paleta de sons, cores e perspectivas da música brasileira se ampliou consideravelmente. A realidade tecnológica também contribuiu para o alargamento não só da informação, mas da capacidade de ação, produção e divulgação, resultando em uma fragmentação mais complexa do que as antigas classificações poderiam nos levar a circunscrever.

Pode-se afirmar que a canção contemporânea se faz sobre outras bases e materias, sendo, portanto, uma outra canção. Mas isso se poderia dizer também dos Novos Baianos e de Luiz Melodia, e, mais tarde, de João Bosco e Djavan, Arrigo e Itamar Assumpção, abordagens cancionais mais ou menos derivadas do díptico nacionalismo/tropicalismo. O que caracteriza esta canção mais recente é o fato de que abriu mão de se situar em relação às tensões consolidadas pelo pensamento brasileiro do século XX (nacional/popular, nacional/estrangeiro, popular/erudito, alta cultura/baixa cultura) e reivindica as fronteiras de um complexo de cultura em acelerado processo de fragmentação e miscigenação.

Passo Torto


























Em ultima instância, esse contexto indica uma situação de perigo crescente. O perigo no ambiente musical brasileiro é não ser passível de uma classificação consolidada, legitimada, plausível. O perigo é não corresponder ao que se espera, seja do ponto de vista do mercado, seja do ponto de vista da cultura e do raio médio de tolerância da escuta. Alguns foram classificados como “malditos”, outros como “experimentais”, justamente porque não comungavam ou não se adequavam às expectativas do mercado e do jet set artístico e político-cultural. A palavra chave, neste caso, me parece “experiência”: do latim experior, experire: pôr à prova, experimentar, correr o risco. Não me refiro somente à experimentação sonora, que determina a expressão “música experimental”, mas a uma dimensão pedestre da canção contemporânea, que, em conexão com a rua, busca contrair e assimilar as expressões que emanam de conflitos urbanos, suburbanos e até mesmo rurais. É assim que nas mãos de alguns autores, a canção contemporânea se recusa a ser decodificada no interior de quaisquer generalizações. Tornando-se pedestre, longe das estruturas institucionais e corporativas, das grandes gravadoras e da grande mídia, ela ganha o mundo, se confunde com o mundo e, assim, com sua constituição múltipla e atribulada.

Em diversas manifestações musicais contemporâneas, percebe-se que a melodia bem acabada ou medíocre, a harmonia tosca ou complexa, o mito do balanço (e do suingue), elementos comuns às dinâmicas cancionais brasileiras, não constituem seu maior fundamento. A canção deixa de se constituir como objeto integrado a um acompanhamento instrumental, e passa a ser adaptada a uma ecologia sonora acidentada, com a qual procura travar diálogos. A ideia de "mistura", por exemplo,conceito celebrado como uma força da música brasileira, sempre se manteve restrita a determinados códigos. Mistura protagonizada por Paul Simon com o Olodum, mas também presente na música de Chico Science (maracatu com hip hop e metal), revelam uma expectativa mais ou menos pré-determinada do que se considera por "mistura" em termos de música no Brasil. Deste modo, acreditou-se que o samba pôde ser "reabilitado" pelo hip hop; e que a batucada sagaz e futurista do Olodum teria sido legitimada pelo country defasado de Paul Simon. Essa geopolítica sonora e oficial da "mistura", na qual um elemento estrangeiro reifica a cultura "folclórica", é hoje substituído por outros tipos de combinações. Operações mais complexas, porque não dizem respeito a características superficiais, mas a estruturas, ambiências, modos de gravação, timbre, revalorização de ritmos esquecidos e suas sonoridades particulares. Por exemplo, o conceito “afrosamba”, elaborado e desenvolvido por Vinícius de Moraes e Baden Powell, retorna pelas mãos do Metá Metá, não necessariamente acompanhado pela legitimação de alguma manifestação estrangeira, mas retrabalhado através de uma forma determinada de execução e performance — no caso, uma forma mais solta, decisivamente mais pesada e robusta, capaz de produzir outros timbres, frequências e estratégicas de composicão e arranjo. 

O eixo produtivo se deslocou do sudeste para privilegiar outros mercados e aportes culturais, configurando o que pode ser chamado de período “pós-industrial” da música brasileira. Nesse contexto, destaco não somente três ou quatro desses autores (Kiko Dinucci, Negro Leo, Rodrigo Campos, Romulo Fróes), mas sobretudo alguns dos procedimentos que eles utilizam em suas canções. Meu esforço a seguir não será o de demonstrar que representam uma “nova canção”, nem de forçar alguma equivalência entre eles. Pelo contrário, tratam-se de compositores com abordagens da canção completamente distintas, mas que mantém algumas preocupações semelhantes. Uma visada panorâmica parece indicar algo para além de uma suposta “nova fase da canção”, mas uma consciência radical do presente e, por isso, fragmentária. Uma recusa positiva a qualquer perspectiva identitária (gênero, nacionalidade, formas consolidadas, convenções) ou representativa (“brasileiro”, “sambista”, “roqueiro”). E o fazem através de alguns procedimentos particulares que me parecem inéditos na canção brasileira, muitos deles ocorrendo de forma cruzada. 

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1. Amálgama: A preeminência da voz sobre a instrumentação é substituída por um amálgama de sonoridades. A voz é mais do que expressão da voz de alguém, isto é, de um meio particular pelo qual o universal da canção se apresenta. A voz integra a instrumentação, a forma da canção se dissolve e se confunde nos materiais sonoros.

Exemplo: As canções do Passo Torto e do disco de Juçara Marçal (Encarnado) estão ancoradas em um tipo de arranjo todo baseado em um plano de permeado por contrapontos, encaixes, ressonâncias, no qual a voz é instrumento para além da representação comum. A harmonia em dedilhados sobreposta a linhas de melódicas que se repetem (ostinatos). As guitarras e cavaquinhos processados por pedais, ruídos que operam não como detalhe, mas como estrutura. Há também um alto grau de percussividade nos instrumentos de corda. Os acordes não são tocados como “base” para a voz, nem há uma integração entre voz e harmonia (ou instrumentação). O que ocorre é uma arena de conflitos programados entre frequências, entre notas, acordes e ruídos, que não se desprendem da forma cancional. Como em “Velho Amarelo”, canção do último disco de Juçara Marçal, ou “Homem só”, música de Romulo Fróes, letra de Rodrigo Campos.








2. Simultaneidade: Uma certa canção contemporânea adere à interpretação instrumental, ao imprevisível da instrumentação, formando com ela um todo mais complexo. O arranjo da canção não é acessório, mas é simultâneo à própria canção, ao procedimento instrumental e performático. A canção não é mais uma forma que o arranjo interpreta, mas é criada na própria instrumentação, na própria performance.

Exemplo: No álbum Ilhas de Calor, Negro Leo gravou toda a instrumentação em sessões de improviso. Após a gravação, selecionou trechos sobre os quais poderia escrever suas letras. Estas por sua vez, acomodadas ao improviso instrumental, converteram-se em canção. "Black Negro" carece de um ambiente que é definido não pela “instrumentação” (porque assim, manteríamos a distinção forma/conteúdo), mas por um complexo de sons que partem dos instrumentos, da voz e de uma certa atitude dos músicos. A marca do acontecimento (a marca da improvisação) permanece e se cristaliza na canção como um dado fundamental de incompletude.





Ocorre algo semelhante na canção “Jovem Tirano Príncipe Besta”: a forma da canção nascendo conforme se desenvolve a performance.




3. Máscara: Em “Black Negro”, percebe-se que a “voz cancional”, a voz do cantor, desliza em meio à instrumentação sob a forma de um instrumento de solo. Leo costura uma espécie de lamento, enquanto troca ideias com os instrumentos de forma espontâneas, integrado ao improviso. A ideia de máscara indica outros registros da voz cancional. A voz troca de máscaras com a instrumentação, o arranjo, a performance. A altura, a intensidade, a duração e, sobretudo o timbre conferem expressão ao som. Um ataque de timbre pode significar mais do que uma nota. A voz é timbre, para soar em justaposição com outros timbres: timbres da guitarra, saxofone, percussão, estes também recodificados por obra da aplicação de efeitos e processamentos. Mais do que exprimir-se enquanto “voz” (uma determinada representação da “voz”), a voz é redistribuída de muitas formas diferentes: a voz pode soar como guitarra, como saxofone, às vezes como navalha, pássaro, chaleira e até mesmo (como na maioria dos casos) a voz em seu devir-voz.

Exemplo: “Black Negro” e “Tepco” são canções onde essa técnica é utilizada. Mas já antes, em “Imposto Robin Hood” do álbum Tara (2013), Leo usa esse método em favor de uma abordagem “mascarada”, “instrumentalizada” da voz.



“Imposto Robin Hood” (Negro Leo/Marcos Lacerda)
Brics Brics Brics
Jasmim Jasmin Jasmin
Outonodocidente Outonodocidente Outonodocidente
Lótus Lótus Lótus Lótus Lótus Lótus Lótus Lótus

4. Lirismo bruto, lirismo punk: o tropicalismo reivindicou um curto-circuito no lirismo tradicional, com a inclusão de vocábulos extraídos das propagandas, temas “kitsch” e sangrentos, abertura aos experimentos poéticos dos concretistas, abertura ao acaso, ao happening. Mais recentemente, este lirismo se deixou permear por artifícios como a descrição técnica, a exposição de temas não-líricos, as frases de efeito, o sexo sem meias palavras (desprovido dos eufemismos bossanovistas), e, essencialmente por uma urbanidade caótica onde tudo se relaciona com tudo. Os temas escolhidos por esses autores os aproximam de linhagens musicais e sonoras que não compartilham de um estatuto no panteão da grande canção brasileira, sobretudo o punk paulistano, o hip hop de periferia, as experiências do pós-punk inglês e norte-americano (a NoWave, p ex), etc. Há também uma visão micropolítica, fragmentária, incrédula de inserção em um todo coerente (os rótulos, a MPB). Presença do desconforto: temas, ruídos, palavrões, estranhamento, mulheres que se transformam em prédios, colégios internos travestidos em grandes centros de sodomização infantil.

Como em “Ilhas de Calor”, mas também em “Helena”, canção de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos:  os versos sacanas e românticos são intercalados por prédios que contraem micose, bronquite.

 
Letra: “Ilhas de calor” (Negro Leo) 
“As madres observam à distância o esquema de compensação psíquica desenvolvido pelas crianças pra suportar a catequese. Naqueles tempos uma madre confessou-me angustiada que assistiu Calígula de hollywood, que as outras madres acudiram em reparar, eram virtuosas na correção. Certo dia essa mesma madre cismou comigo, não entendi a barra dela, quis obstruir o acesso à minha ilha: pau pau pau...”


“Helena” (Kiko Dinucci/Rodrigo Campos)  
Helena
Não vem dizer Helena
Que a vida é só pra nós
Que a vida é só pra nós
Helena
Tem só nós dois Helena
A vida é só pra nós
A vida é só pra nós
Helena,
os prédios tem micose
Helena, os prédios tem varizes
Helena, os prédios tem bronquite
E a cidade é um rádio por dentro
(…)
Helena,
os prédios também morrem
Helena, prédios também transpiram
Helena, prédios também escarram
E a cidade é o centro do cerco.

Negro Leo se apropria de forma particular de uma técnica desenvolvida por Guérasim Luca, poeta surrealista franco-romeno nascido em 1913-1994. Luca investiu no tensionamento da língua através de uma diversidade de técnicas literárias que desproviam a palavra de suas funções correntes e sublinhava ritmo, tessitura, voz, performance. Leo realiza um procedimento semelhante em diversas canções, utilizando as palavras como elemento rítmico em sintonia com as modulações instrumentais, emitindo formas sonoras assemânticas em um registro jazzístico-improvisado. Como em "Tepco":




Por fim, o niilismo debochado e violento da canção “Rá Rá Rá”, novamente assinada por Dinucci e Campos, de imagens alusivas à sanguinolência splatter dos filmes de terror norte-americanos, à ultraviolência, e, no refrão, o pedido nonsense: “deixa eu gozar enquanto morro de tanto rir”. Este conteúdo provoca contraste radical em um samba de feições tradicionais. Choque, confronto.


"RáRáRá" (Kiko Dinucci/Rodrigo Campos) 
Quero sentir seus ossos
Quebrando entre os dentes
Seus entes pedindo socorro
Quero ouvir o esporro
Dos olhos pulando da cara
Coisa rara
Em terra de cego de olho de vidro
Quero honrar teu amigo
Antes da ceia
Um só tiro no umbigo
Fecundar sua filha
No mais
Amar tudo que ama
Enfim, brincar no seu autorama
Desculpe a dignidade
De lhe dizer atrocidades
Mas essa é a minha maior qualidade
Deixa eu gozar
Enquanto eu morro
De tanto rir 
Rá rá rá

(Obs.: Notas apresentadas no evento "Para ouvir uma canção: Voz e Tecnologia", 17/10/2014)

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