segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Tannenbaum, um álbum de inverno — Bate-papo com Kevin Drumm

Drumm na Audio Rebel em setembro de 2012 (foto: Sávio de Queiroz)


Não foram poucas as perguntas que o americano Kevin Drumm deixou passar, ora alegando não ter feito nenhum esforço consciente em determinada composição, ora abrindo mão de expor suas construções de um ponto de vista conceitual. Afinal, para ele tudo é matéria, “mão-na-massa”, experimentação no sentido mais objetivo que a palavra pode ter. E experiência, claro, a dele e a do ouvinte, unidos pelo prazer mais simples e imediato que é o de se escutar sons desafiadores, imprevistos, sem maiores consequências no campo da teoria.

Se perguntávamos sobre uma reviravolta em algum trecho de uma faixa, ele nos descrevia a experiência de “perder-se no som”; se procurávamos entender sua evolução como artista, ele falava de cabos e apetrechos eletrônicos. Porém, antes de interpretá-lo como um antiintelectualista empedernido, convém ressaltar o gosto em se mostrar despojado, quase simples, a paciência em descrever sua rotina de trabalho, sua relação cotidiana com os aparelhos, sua disposição científica em experimentar.

Em um dos momentos mais celebrados de seu livro Introdução à uma verdadeira história do cinema, Jean-Luc Godard afirma que em seus primeiros filmes, a questão não se concentrava puramente sobre o caráter expressivo da linguagem, mas no duplo aspecto da experiência, em dois movimentos distintos: “o que se pode chamar de expressão, que consiste em pôr para fora alguma coisa, e depois, ao contrário, a impressão, que consiste em pôr para dentro alguma coisa.” Se por um lado, o caráter expressivo do trabalho de Drumm implica na construção de uma zona de perigo extremo — o contato com o turbilhão de juízos, referências e procedimentos — não se pode negar que há, de alguma forma, uma contrapartida concreta: a materialidade de suas “coisas” se constituem como dado “impressivo”, uma resposta potente e pregnante ao ambiente que o circunda.

A dificuldade em lidar com seu trabalho de uma forma conceitual, revela em contrapartida outro fato curioso: Drumm se refere às suas peças como “things” (coisas), o que nos leva a cogitar o tipo de aproximação que ele mantém com sua forma de compor e se expressar através de sons. A materialidade evidente de suas “coisas” resulta da fricção entre o mundo interno e o mundo externo. Sim, Drumm é um solipsista convicto, e Tannenbaum uma plataforma apta a deixar-se imprimir por experiências materiais concretas, como o inverno, a umidade, a eletricidade. Ou, ainda, se se preferir, a música concreta, a acusmática, o drone, etc. 

Juntamente com a entrevista, publicamos hoje um análise do Tannenbaum por J-P Caron, intitulado provocativamente como Tannenbaum Contra o Drone.

Bernardo Oliveira e J-p Caron

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Imperial Distortion é uma referência importante para um certo conjunto de pessoas envolvidas com que chamamos, por falta de termo melhor, música experimental. No entanto, era um disco de materiais mais antigos que foram reunidos e lançados pela Hospital Records. De lá para cá, você diria que a forma como você pensa e produz música mudou?

Não tenho certeza. Parece que, aos poucos, venho me livrando ou quebrando acidentalmente meus aparelhos, ou simplesmente deixo de gostar do meu set up e começo um novo. Percebi recentemente que odeio ter um monte de cabos voando pra tudo quanto é lado, então acabei dispensando alguns equipamentos que requerem um monte de cabos... o que é provavelmente um pouco louco, mas e daí? Basicamente eu não sou tão ligado a um aparelho específico, mas é claro que eu preciso de alguns, muitas vezes me desloco de um para o outro, como um imigrante. Meu computador está nas últimas, então provavelmente o próximo material será feito no gravador de cassetes, portátil, 4-track. Quanto às atuações ao vivo, não terei nenhuma por alguns meses e não sei que tipo de aparelhagem estarei usando quando chegar a hora. Há dez anos era guitarra e sintetizador o tempo todo; agora já tem dois anos ou mais que eu não uso essa aparelhagem.

Quais foram as referências conceituais para o título do álbum e as canções de Tannenbaum? Uma referência ao inverno e à noite parece se insinuar… 

Sim, o inverno foi o tema, assim como no ano passado fiz um álbum de inverno (na verdade, mais referente ao natal do que ao inverno) chamado Blast of Silence. E no verão passado lancei Humid Weather, dedicado à umidade, que eu odeio. Odeio tanto que senti que merecia minha atenção. O inverno, por outro lado, é algo que eu sinto de uma forma diferente. Contudo, a música não foi feita para fazer você sentir a neve invernal e macia... Eu tenho essa coisa sobre o inverno. Ughhh!

Tannenbaum caracteriza-se no geral por um som bastante filtrado, como que produzido “sob a água”. Você poderia comentar os aspectos técnicos e conceituais que o levaram a este som?

Eu trabalho com o que tenho. Precisamente neste momento, meu hardware consiste em um par de geradores de frequência, uma synthbox, um pedal de reverb, alguns equipamentos de teste… Um monte de lixo, basicamente. Por algum motivo eu gosto desse tipo de som ressonante, “aguado”.

"Há dez anos era guitarra e sintetizador o tempo todo; agora já tem dois anos ou mais que eu não uso essa aparelhagem."



Falemos a respeito de “Night Side”: uma faixa que explora os volumes e harmônicos de forma bastante prolongada. Qual seria sua principal preocupação ao estender a faixa por mais de uma hora?

Eu não sei. Às vezes eu acho que é só uma hora, qual é o problema? E então eu penso "ewww, uma hora?!" Eu só fiz a faixa e tipo me perdi nela…

A reviravolta no final de “Winter Ice” foi planejada antes da gravação ou fruto de improvisação?

Mmmm... Eu acho que foi trabalhado, e não tanto uma improvisação.

Tannenbaum é marcado pela exploração de ondas em baixos volumes, mas que explodem nas frequências mais proeminentes das últimas duas faixas. Você poderia nos detalhar o contexto de concepção e produção de “Grace” e, sobretudo, nos timbres vaporosos de “Dimming The Gas Light”?

O fato é: as três faixas de Tannenbaum constituem o álbum. As últimas quatro faixas eram um cassete duplo. Então, elas são um adendo ao CD duplo, um tipo de animal diferente.

Você lançou muitos CDrs em 2012, uma tendência que começou a ser mais corriqueira em seu trabalho a partir de 2011? Qual seria o estatuto desses CDrs?

Eu já perdi a conta. Também lancei cassetes nesse meio tempo... Mas todas as edições eram pequenas, variando de cerca de 40-90 cópias no total.

"Gosto mais de alguns discos lançados de maneira independente do que de alguns dos que foram lançados através de selos."



















Podemos admitir algum tipo de distinção entre sonora e conceitual entre esses CDrs e os álbuns editados pelos selos?

Há um pouco de diferença. Gosto mais de alguns discos lançados de maneira independente do que de alguns dos que foram lançados através de selos. A diferença é que eu queria fazer as coisas de forma independente por um longo tempo. E também porque eu sempre trabalho com música diariamente — toda noite mais especificamente. Eu estava cansado de acumular gigabytes de arquivos de som intitulado "dsfadfdkfjaf", ou o que quer que seja, encher uma gaveta cheia de fitas cassete não marcadas, verificá-las de mês em mês mais ou menos... Dez anos para ver se há algo que eu fiz tempos atrás e que possa prender-me de algum jeito (a exemplo de como se formou o Imperial Distortion). É algo sobre — e eu não quero soar como um hippie — estar presente. Aquela velha equação científica: tentar alguma coisa, realizá-la, seguir em frente. Isso também diz respeito à exploração de idéias simples, com foco em uma ou duas coisas.

Em suas apresentações não parece que você esteja preocupado em recriar ao vivo determinadas condições/sons do estúdio, mas, sim, engajar-se em uma composição nova em tempo-real. Que relações você vê entre a sua prática ao vivo e a sua composição em estúdio?

Alguns dos equipamentos podres que habitam as ruínas do meu quarto são ou muito volumosos ou muito frágeis, ou ainda, produzem um som de tal forma que é simplesmente estúpido levá-lo para viajar ao exterior, gastar centenas de dólares em taxas de bagagem com excesso de peso para fazer um show ou dois. Então eu levo as pequenas coisas, e peço equipamento emprestado. Eu peço equipamento emprestado e uso!:)


Leia "Tannenbaum contra o drone", ensaio de J-p Caron

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Grizzly Bear – Shields (2012; Warp, EUA)

























Em seu último trabalho, o Grizzly Bear recorre mais uma vez a uma concepção que sintetiza de forma particular instrumentos acústicos e eletrônicos, aspectos da música psicodélica em sua tendência folk (vide o “baroque pop” de Van Dyke Parks ou o Scott Walker dos anos 60), experimentações pontuais, seja na estrutura do arranjo (a reviravolta em “Lullaby”, o canto de trabalho em “Plans”), seja através da inclusão de compassos compostos (como em “Sleeping Ute”) e ruídos (como em “I Live With You”). Aliada a essa sonoridade simultaneamente evocativa e original, imagens poéticas tingidas por uma psicodelia controversa, que delira nos recantos mais acinzentados da imaginação — como se pode comprovar na representação imagética traçada nos videoclipes de “Two Weeks” e no recém-lançado “Gun-Shy”. Em Shields todo esse arcabouço conceitual não se altera de forma significativa, o que nos levaria a crer que trata-se da repetição de uma fórmula que, parece, vem dando certo. Mas uma audição mais atenta revela que, para além das evidências, o Grizzly Bear ainda tem muita estória para contar.

Há um ponto de convergência no cerne do trabalho da banda que não pode ser desprezado: a densidade pop da composição de Edward Droste e, particularmente, de Daniel Rossen, se adequa perfeitamente aos arranjos repletos de detalhes de Chris Taylor, responsável por organizar de forma coesa e criativa uma parafernália que inclui, além da trinca baixo-guitarra-bateria e do violão folk, cordas, sopros, sintetizadores e demais apetrechos eletrônicos — Taylor também produziu e mixou In Ear Park do Department of Eagles de Daniel Rossen e Fred Nicolaus. É perceptível a exploração das potencialidades formais desta convergência no trabalho do grupo, expressa sobremaneira através da pletora de detalhes e dinâmicas. Mesmo cercados por um arsenal de instrumentos e referências, a riqueza dos detalhes e das dinâmicas confere identidade ao grupo, em um cenário tomado pela “retromania” estéril e a nostalgia travestida de “estilo”.

A título de exemplo, observem os diversos momentos de “Half Gate”, uma provável composição de Droste: a introdução solene do cello, o exemplar domínio das dinâmicas de volume da caixa de bateria e da guitarra, o crescendo na segunda parte, a explosão do refrão, o breve interlúdio orquestral antes de retornar à estrofe e o final apoteótico. Ou as diversas partes e camadas de “Speak In Rounds”, sobretudo o arranjo de sopros no final, a proeminência da levada de violão, a junção estratégica com a vinheta “Adelma”, composta no mesmo tom. E a entrada de “Sleeping Ute”, com a guitarra executando um riff em 6/8: a bateria poderia simplesmente acompanhá-la, mas ao contrário, recorta o andamento interpondo a caixa e o bumbo em posições em nada evidentes, com o auxílio de percussão, hammond, violões e… “explosões” (sim, elas estão lá!). 

O fato de que, pela primeira vez, todas as composições foram assinadas pelos quatro membros reforça a tese da convergência fluente entre o setor cancioneiro e o setor da concepção sonora. Mesmo que a tendência seja atribuir ao vocalista a autoria da canção — o que se confirma relativamente com “Sleeping Ute” e “A Simple Answer”, cantada por Rossen, ou “Yet Again” e “The Hunt”, cantada por Droste — o que temos em Shields é, mais uma vez, um brilhante desempenho de conjunto. Vale notar que o Grizzly Bear é uma das poucas bandas hoje em dia capazes de se expressar desta forma em disco e em show. Se o caro leitor estiver ciente do concerto que eles farão no Rio de Janeiro amanhã... é preciso dizer mais alguma coisa?

Bernardo Oliveira