segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Escutar de novo, pela primeira vez



















(A propósito dos shows do trio paulistano Metá Metá no Oi Futuro Ipanema, dias 17 e 18 de agosto de 2012).

Baby, baby, baby, não se assuste, a cidade é iluminada! Mas serena? Tranquila? Não, defintivamente. Como te (en)cantar, São Paulo? Como lançar o feitiço da canção por sobre seu asfalto, cantar o encantamento de seus desencantos, ligado no 220, na “padoca”, nos olhares discretos e garagens infinitas? As respostas possíveis foram dada pelos punks da periferia, pelos rappers, pelos versos tortos da lira — e mesmo teu samba é anômalo! Seu corpo inteiro é vasto e cresce multidirecionado, mas muitos reconhecem em ti uma “periferia”, desencavada do esquecimento estratégico para habitar para sempre nosso imaginário (blame on the boogie, Nelson Triunfo, Racionais…). Seus abismos sociais, interações tímidas e canções paradigmáticas, que entoam a cidade remota, a cidade dos que “moram longe” (longe de quem, de onde?), que padecem da falta de condução, “se eu perder esse trem que sai agora às 11h…” Como cantar esta cidade munido apenas por violão, saxofone e uma voz? Como fugir da maldição da MPB, do “sambinha” e da “mpbezinha”, munidos com as mesmas armas? “Das armas brancas, químicas quentes, música é a preferida…”

A armadura instrumental pode não deixar dúvidas, mas o que fazer diante do fato de que as dúvidas simplesmente desmoronam? Basta assimilarmos uma realidade improvável, segundo a qual teriam marcado encontro na mesma encruzilhada, sob a benção de todos os exus e orixás, o improviso jazzístico de Peter Brötzmann, o peso do Black Sabbath, os afro sambas de Vinícius e Baden Powell, os detritos sonoros do drone, os ruídos no wave, a pegada do punk e do metal, a música litúrgica da umbanda e do candomblé, as dissonâncias de Arrigo e Sonic Youth, a pujança do tambor de mina, da ciranda, da umbigada, o canto das três raças, o cinema falado, a escola de samba e a onipresença de Benedito João dos Santos Silva Beleléu, vulgo Nego Dito, cascavéu, ensinando a bater cabeça no sobressalto do afoxé, e a fazer riff de metal no galope acertado de um “batuque” de cordas e sopros. 

Kiko Dinucci converte seu instrumento em um híbrido de violão e guitarra, mas também assume as formas do atabaque e do agogô. Em “Vale do Jucá”, canção de Siba Veloso, adapta o instrumentos às técnicas do “piano preparado” de John Cage, interpondo um pedaço de plástico entre as cordas e o corpo do violão. Por vezes, emula uma banda inteira através da utilização de pedais de distorção, palhetadas abafadas, linhas de baixo repletas de intervalos menores, acordes dissonantes e dedilhados abertos, suingue e virtuosismo. Os sopros de Thiago França extrapolam o papel de “solistas” geralmente consagrado a este instrumento, e, tal como o violão, se afirmam a partir de uma série de possibilidades imprevistas: percutindo as chaves, criando desenhos rítmico-melódicos para servir como acompanhamentos e usando as ressonâncias da respiração para criar texturas sinistras. Com seu timbre versátil e interpretação precisa, Juçara Marçal é hoje a maior cantora brasileira surgida nos últimos 30 anos. Como nenhuma outra, conjuga força expressiva e espontânea, com versatilidade e, o que mais chama a atenção, dosagem precisa de emoção na emissão e nos floreios, o que a destaca de grande parte das cantoras da atualidade.

Ressalto as qualidades instrumentais do conjunto porque além da concepção, é a execução o grande barato de um concerto do Metá Metá. Faixa introdutória de Metal Metal, o próximo trabalho previsto para outubro, “Laroiêxu” abre-alas: o sax combina ruídos, ambiências e melodias soltas, o violão percussivo se transfigura em um terreiro de umbanda e Marçal solta a voz como quem lança impiedosamente o fio de uma espada sobre os sentidos da plateia. Introdução impactante, seguida pelas canções do primeiro álbum: “Vale do Jucá”, “Umbigada”, “Trovoa” (linda canção lírico-coloquial assinada por Maurício Pereira, com mais um espetáculo à parte protagonizado pela cantora), “Papel Sulfite”, “Samuel” e a evocativa “Vias de fato”. A sessão “Beleléu”, momento em que o trio se esmera em interpretações matadoras para algumas canções do bardo paulistano, traz duas pérolas de Pretobrás II — Maldito Vírgula, “Ir pra Berlim” e “Más línguas” — esta última, com seus versos infames, porém delicados, gerou gargalhadas: “até sessenta, cê tenta, depois dos setenta… sessenta!” “Tristeza não”, faixa que encerra Metal Metal, é uma composição inédita de Itamar com Alice Ruiz, a meio caminho de Black Sabbath e dos Stones de “Can’t You Hear me Knockin’”, um peso descomunal que justifica o título no mínimo curioso do próximo disco.

Composições de Dinucci com Douglas Germano (que lançou em 2010 o ótimo Orí), “Oranian” e “Obá Iná” reforçam uma concepção calcada no punch da execução e nas infusões sonoras inesperadas, executada por três instrumentistas que empunham seus instrumentos como um campo aberto de experiências. Operando por contraste com o discurso dominante da chamada MPB, a música do Metá Metá expõe o ouvinte a uma experiência situada entre a familiaridade e a desorientação — na qual se escuta tudo de novo, pela primeira vez... Recusa-se, ao contrário do que se espera hoje da sigla MPB, a emprestar tons pastéis e execução standard a elementos do rock e da música de todos os santos, extrapolando fronteiras pré-delimitadas pela dinâmica ideológica e mercantil. Não seria o esgarçamento de tendências comuns ao discurso mediano da MPB que confere ao grupo algo para além das siglas e gêneros? Em outras palavras, como cantar São Paulo no século XXI? A resposta não poderia ser mais explosiva e eficiente: conjurando-as com outras armas brancas, outras químicas quentes, curto-circuito.

Bernardo Oliveira

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