quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

(crítica - disco) Wilson Moreira + Baticun (1991-2011) (2011; Musicazes, Brasil)


Este talvez seja o álbum mais injustiçado nas famigeradas listas de fim de ano. Trata-se do encontro entre Wilson Moreira e o grupo percussivo Baticun, formado por Beto Cazes, Carlos Negreiros, Jovi Joviniano e Marcos Suzano. Sem dúvida, um dos maiores compositores da segunda metade do século XX no Brasil, Wilson Moreira é autor de sucessos como “Goiabada Cascão”, “Gostoso Veneno”, “Senhora Liberdade”, “Judia de Mim” e “Quintal do Céu”, as últimas duas gravadas por Zeca Pagodinho. Acompanhado pelo Baticun, registrou, entre os anos de 1988 e 1991, vozes e bases com a intenção de pleitear o auxílio do produtor e fotógrafo japonês Katsunori Tanaka – que também produziu Nelson Sargento, Velha Guarda da Portela e o próprio Moreira. O projeto não foi adiante e só agora, vinte anos depois, foi editado pelo selo de Cazes, acrescido de violão, cavaquinho, sopros, percussões e coral.

O resultado? Bem, posso afirmar, de saída, que contrasta radicalmente com tudo o que se faz hoje em termos de samba no Brasil. Vale notar como é significativo o fato de que esse contraste seja derivado da personalidade de Wilson Moreira, 75 anos, grande compositor e “solucionador cultural” carioca, que ao lado de Nei Lopes, compôs uma das parcerias mais prolíficas de toda a história do samba carioca. Conservou, porém, sua independência estilística, destilada através de pérolas como Okolofé, Peso na Balança, Entidades, ou nas que participou com o Partido em 5, de Antônio Candeia. Tradição e ousadia sempre caracterizaram seu trabalho.

Que os grandes órgãos de imprensa insistam inexplicavelmente em não lhe prestar a devida atenção, e que ele nunca habite a lista dos “cem mais da música brasileira”, apenas comprova a profunda importância de sua obra. A seu lado, outros grandes compositores como Luiz Carlos da Vila e Beto Sem Braço permaneceram a meio palmo de uma divulgação justa, evidenciando que a questão não passava somente por critérios estéticos… E, no entanto, se tornou habitual considerar a música desses autores sob o guarda-chuva do “samba de raiz”, ou samba “tradicional”. Mas a julgar exclusivamente pela música que emana desta colaboração, nada leva a crer que se pretendam ligados a uma “tradição” pétrea, ou a uma identidade musical limitada a certos procedimentos, timbragens, tipos de composição etc.. Pelo contrário, Wilson Moreira + Baticun evidencia uma tensão constante entre o legado e o futuro, entre o que já é sabido e adquirido e aquilo que é fruto de inesperados lampejos criativos. 

Assim, a faixa de abertura, “Abrindo os Trabalhos”, ouvimos um “aguerê” – ritmo de oxóssi, oriundo do candomblé – com percussões pesadas e um baixo grave que, num primeiro momento confundi com Massive Attack. À moda de um mestre de cerimônias, Moreira dá as boas-vindas ao ouvinte, e com seu sorriso característico,  brinca com a própria ousadia: “hiiiii, agora tá gostando né? Pode sambar, pode sambar, isso…” Na sequência, “Questão de Identidade”, demonstra como um eventual alistamento ideológico não restringe a criatividade de seus agentes. Trata-se de um jongo de refrão em versos brancos (i. é, sem rimas), cuja instrumentação se constitui apenas por instrumentos de percussão: duas práticas incomuns no samba carioca. 

“Só você não entendeu
A história está aí
Seu problema é pessoal
Que não assume onde nasceu”

É lícito considerar que tanto o significado do verso, como o título da canção, apontam para uma perspectiva abstrata acerca do conceito famigerado de “identidade nacional”. Porém, há uma farta literatura sobre o tema, e longas batalhas ideológicas ainda serão travadas a esse respeito – as inclinações didáticas do “cepecismo” não morreram, assim como o deslumbre diante da "diversidade"... Porém, considero uma hipótese discreta, mas válida: de que o mero soar da música incrível presente nesta colaboração possa trazer, com suas ondas invisíveis, mais do que questões, polêmicas e explicações sócio-científicas, mas uma resposta consistente e efetiva em forma de música. Música rica, jovial e festiva.

Um capítulo à parte são os arranjos e a instrumentação compostas pelo Baticun, que, primeiramente, foge à timbragem comuns às concepções padronizadas que marcaram o gênero nesses últimos vinte anos. Em comparação com este trabalho, o samba gravado hoje no Brasil abdicou da pesquisa de timbres. Reparem nas sonoridades pouco usuais em “No Talho da Madeira” ou no bravun “Negro Doce Amor”, atravessado por ataques de guizos e derbak. E mesmo em sambas como “Terreiro Grande”, percebe-se não só a inclusão de instrumentos pouco utilizados, como também empregados de modo atípico. Tal orientação transfigura o clima malemolente de algumas das canções de Moreira, conferindo-lhes um balanço forte e vibrante, reforçado pela jovialidade de sua voz, captada em um momento de grande vigor criativo. Um momento particularmente emocionante do disco é a entrada do deslumbrante naipe de sopros em “Ôloan”, arranjados por Henrique Cazes.

As letras de Moreira percorrem miríades urbanas, suburbanas e rurais, como na parceria com Nei Lopes, “Mulata do Balaio” ou no jongo/reggae “No Arrebol”; antigos hábitos e costumes, como na descrição extemporânea, quase poética, do trabalho madeireiro em “No Talho da Madeira”; a religiosidade afrobrasileira, em “Ôloan” e na corimba “Nanã”. Além de um domínio impressionante dos ritmos afrobrasileiros, que o permite explorar uma ampla variedade de inflexões poéticas e musicais, Moreira é artesão de canções, que sempre revela palavras e ritmos invulgares, para não dizer inusitados. A combinação deste talento com a ousadia dos arranjos do Baticun, portanto, é absolutamente bem-sucedida, uma surpresa em todos os sentidos. Que este projeto tenha ficado tanto tempo engavetado só confirma o que se suspeita desde a primeira audição: de que se trata de um trabalho adiante do seu tempo. 

Bernardo Oliveira

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